domingo, 16 de setembro de 2012

O discurso do analista

Não esperem portanto do meu discurso nada de mais subversivo do que não pretender uma solução” (Lacan)

O presente estudo, enquanto referencial teórico do Seminário “O Discurso do Analista”, apresentado pelo autor na Sociedade Psicanalítica Freudiana do Rio de Janeiro em 23 de agosto de 2012, tem como objetivo trabalhar a temática proposta mediante revisão literária de dois textos de Lacan, quer sejam: “O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise” e “Radiofonia”, transcrição de sua entrevista à uma emissora belga, encontrada em “Outros Escritos”.

Inicialmente, caberia questionar o que se entende por discurso. A sociedade pós-moderna vivencia uma verdadeira crise no que tange ao entendimento do vocábulo. Empiricamente, por discurso entende-se nos tempos atuais aquilo que se fala ou se escreve, totalmente destituído de qualquer relação com a práxis. A simples evocação da palavra discurso causa mal estar também no meio científico, sendo interpretada como algo que não se sustenta por si só, ou que só se sustenta quando baseado ou fundamentado em evidências.

Lacan inicia seu Seminário justamente subvertendo este conceito equivocado, ao distinguir o que está em questão no discurso como uma estrutura que ultrapassa em muito a palavra, pois sem palavras, segundo ele, este discurso subsiste em relações fundamentais, que por sua vez não poderiam se manter sem a linguagem. O que está em jogo, segundo ele, é a existência do discurso para além das enunciações efetivas.

Outra questão que se coloca, em psicanálise, é a impossibilidade de dissociar-se o discurso da prática, haja vista ao fato de que é justamente este que fornece subsídios para ela. É no discurso do paciente, e não na fenomenologia sob a qual se fundamenta o saber psiquiátrico contemporâneo, que se revela a estrutura diante da qual se constrói a direção do tratamento psicanalítico. O já conhecido aforismo lacaniano, segundo o qual o inconsciente se estrutura como uma linguagem, nos dá base para pautarmos nossa clínica nesta campo, que se entrelaça com a fala, mas não se restringe a ela. Pelo contrário, é muitas vezes na ausência dessa fala que uma estrutura se revela não fenomenologicamente, mas como posição do sujeito na linguagem.

A relação do discurso com o gozo é formulada por Lacan em sua relação deste com o saber, posto que para ele, o saber é o gozo do Outro. Do Outro na medida em que o faz surgir como campo, o da linguagem. Nosso percurso nos mostra que o movimento em direção ao gozo tem como objetivo tamponar a falta, que por sua vez remete ao desejo.

O discurso da ciência contemporânea articula-se justamente com esse tamponamento da falta. Em detrimento à escuta, criam-se cada vez mais diagnósticos baseados em evidências, que desimplicam totalmente o sujeito do lugar de onde ele pode retificar subjetivamente sua posição quanto ao gozo. Questiona-se aqui se não seria esta uma versão caricata do Discurso do Mestre, onde um significante mestre encontra-se no lugar de agente e interfere numa cadeia de outros significantes de modo a produzir uma perda que faz emergir a verdade do sujeito. O questionamento gira em torno do fato deste significante mestre não intervir, ou intervir de modo a não produzir uma perda, uma falta que ponha o sujeito ao encontro de (e não de encontro ao) seu desejo.

Freud sustenta um discurso onde o sujeito não apenas não sabe o que diz, como também não sabe quem o diz, e neste sentido Lacan diz que ele se aproxima de Marx, ao desarrumar o discurso dos que querem questioná-los. Lacan chega mesmo a fazer uma equivalência entre o objeto causa de desejo freudiano (mais de gozar) e a mais valia marxista. Em seu livro Convite à Filosofia, Marilena Chaui aponta três grandes feridas narcísicas provocadas respectivamente por Copérnico, Darwin e Freud no saber humano. A primeira delas diz respeito a Terra destituída de seu lugar no centro do Universo. A segunda ao homem enquanto apenas um elo na evolução da espécie, e a terceira à consciência enquanto menor e mais fraca parte de nossa vida psíquica. Chaui acrescenta a estas três feridas a causada por Marx com seu conceito de ideologia. Sem querer pormenorizar demais a questão, pode-se fazer um equivalente entre o furo que Freud promove no discurso da ciência e o que Marx provoca no discurso capitalista.

A falta. Eis-nos aqui mais uma vez diante dela. E nessa intenção cabe mencionar o Discurso da Histérica, onde o sujeito enquanto agente se dirige ao saber do outro para produzir um questionamento acerca deste e instaurar o mais de gozar. A histérica sabe como ninguém que esse outro é furado, e parte do questionamento dele para manter seu desejo insatisfeito. Lacan afirma que é esse discurso que conduz ao saber. Não o saber da ciência, mas o saber psicanalítico.

Se promovemos um quarto de giro neste discurso, estamos diante do discurso do analista, que tem o objeto causa de desejo no lugar de agente, o sujeito no lugar do outro, o significante-mestre no lugar da produção e o saber deste sujeito no lugar da verdade, a qual somente ele pode ter acesso.

Sustentar o discurso do analista, estar neste lugar, pressupõe presentificar a falta. É o que Freud nos recomenda quando diz que se deve “trabalhar como uma besta” e “tomar todo caso como se fosse o primeiro”.

Em Radiofonia, Lacan responde à impossibilidade de governar, educar e psicanalisar mediante a relação dessas três profissões com o Real, enquanto campo do não sentido. A análise parte de uma equivocação do sintoma para um esvaziamento de sentido, visando justamente o Real.

Portanto, é fundamental que o analista se esvazie de saber e de sentido, questões que passam pela própria análise pessoal, para sustentar seu discurso na clínica. Do contrário, estará literamente fazendo outra coisa que não análise.

BIBLIOGRAFIA

- CHAUI,Marilena: Convite à Filosofia – São Paulo: Editora Ática, 2000

- FREUD, Sigmund:Obras Completas – Rio de Janeiro:I mago Editora,2006

- LACAN,Jacques: O Seminário,Livro 17:o avesso da psicanálise – Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1991

- LACAN, Jacques: Radiofonia in Outros Escritos – Rio de Janeiro, Jorge Zahar,2001

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