sábado, 22 de setembro de 2012

Medianeras e o amor pós-moderno



“E hoje em dia, como é que se diz: eu te amo?”
(Renato Russo)

            Martín é um jovem descrente do amor, tratado por seu psiquiatra como um suposto fóbico em recuperação. Quase não sai de casa, e quando faz isso, não usa transportes coletivos. Sua vida é limitada e circunscrita a um curto espaço desde a ruptura de uma relação amorosa estável, que findou após a ida de sua namorada para os Estados Unidos. Ela havia jurado a ele que voltaria, o que não aconteceu. Ao invés disso, ligou de lá dando fim ao namoro.

            Os anos se seguem sem que Martin consiga dar sentido a essa perda, ou mesmo entender que ela não tem sentido. Seguem sem que ele consiga fazer um trabalho de luto pela partida da pessoa amada,  de quem herdou a cadelinha deixada a seus cuidados, que o faz lembrar dela  o tempo todo. Ele procura em vão encontrar nas outras garotas substitutas da ex-namorada, e seus breves relacionamentos fracassam, pois ele não se mostra disposto a vivenciá-los intensamente.

            Mariana é uma bela e doce arquiteta que vive amores nômades. Amores que vem e vão num circuito repetitivo e cujo final sempre a remete à uma frustração. Sente-se rebaixada enquanto objeto amoroso, usada pelos homens que dela se aproximam, quando na verdade é ela que não consegue jogar o jogo do amor, cuja regra versa em torno do respeito à diferença e ao limite do outro.

            Se amar é dar o que não se tem a quem não o quer, como diz Lacan, Martin e Mariana formariam, caso se encontrassem, o par sintomático do obsessivo que dá tudo para que nada lhe peçam com a histérica que não

se contenta com nada que o outro lhe oferece, para manter o desejo insatisfeito. Mas eles não se encontram, porque estão imersos em suas próprias ignorâncias esperando por um pouco da afeição alheia, sem mostrarem-se receptivos a ela.

            Existe ,no entanto, um traço que os une: a solidão. Este traço é metaforizado quando Mariana encontra Martin vestido com uma camisa listrada em vermelho e branco, cores de seu time de futebol e que a remetem a um livro infantil. É o traço, grosso modo falando um “mal necessário”, que permite o encontro. Me pergunto se não seria este mesmo traço um “bem necessário” ou mesmo “bem (no sentido quantitativo) necessário” para que tal encontro se dê.

            Renato Russo nos diz que quando se aprende a amar, o mundo passa a ser seu. Essa frase nos remete a Freud, que alerta sob o quão forte fica uma pessoa quando está segura de ser amada. Amar e ser amado, de fato, ilude, porque é o que se coloca como suplência da ausência da relação sexual, da “cara-metade”, da “tampa da panela”.

            O que vemos atualmente, entretanto, é uma ilusão irredutível de completude, uma incapacidade de lidar com a presença do ser amado enquanto falta. Em seu livro “O amor líquido”, o sociólogo polonês Zigmunt Bauman nos fala da fragilidade dos laços afetivos na pós-modernidade, manifestada sobretudo pela busca incessante de parceiros em salas de bate-papo da web, em detrimento ao encontro pessoal, que não prescinde do olhar. Ora, é muito mais fácil “dar um Ctrl + Alt +Del” no outro do que ter de se explicar a ele quando as coisas não vão bem.

            Nessa direção, caminha-se para o gozo mortífero do “antes só do que mal acompanhado” e do “antes mal acompanhado do que só”. E daí segue-se para um deserto de amor ou para um “excesso de amor” que ofende e mata o próprio amor. O resultado é a insatisfação, não pela perda da partida disputada, mas pela perda por W.O.

            Descrença no amor, amor nômade e amor líquido são todos nomes do amor na contemporaneidade. Amor em tempos de gozo, tema abordado na XIX Jornada Anual da Escuela de la Orientacion Lacaniana, e que produziu uma obra de mesmo nome.
            No que tange ao gozo, Lacan nos diz que só o amor é capaz de fazê-lo ceder ao desejo. Desse modo, a maneira de dizer “eu te amo” hoje em dia parece inequívoca. É com a língua que fazemos isso. Na dimensão erótica, de vida, da linguagem e na disponibilidade de nos colocarmos diante das trocas que dela advém.


Referências Bibliográficas

XIX Jornadas Anuales de la EOL – El Amor en Los Tiempos del Goce: Qué Responden Los Psicanalistas – Colecion Orientacion Lacaniana, 2011
ALOUCH, Jean – O Amor Lacan – Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2010
BAUMAN, Zigmunt – O Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos – Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2004
LACAN,Jacques – O Seminário – Rio de Janeiro: Jorge Zahar

           
           

domingo, 16 de setembro de 2012

O discurso do analista

Não esperem portanto do meu discurso nada de mais subversivo do que não pretender uma solução” (Lacan)

O presente estudo, enquanto referencial teórico do Seminário “O Discurso do Analista”, apresentado pelo autor na Sociedade Psicanalítica Freudiana do Rio de Janeiro em 23 de agosto de 2012, tem como objetivo trabalhar a temática proposta mediante revisão literária de dois textos de Lacan, quer sejam: “O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise” e “Radiofonia”, transcrição de sua entrevista à uma emissora belga, encontrada em “Outros Escritos”.

Inicialmente, caberia questionar o que se entende por discurso. A sociedade pós-moderna vivencia uma verdadeira crise no que tange ao entendimento do vocábulo. Empiricamente, por discurso entende-se nos tempos atuais aquilo que se fala ou se escreve, totalmente destituído de qualquer relação com a práxis. A simples evocação da palavra discurso causa mal estar também no meio científico, sendo interpretada como algo que não se sustenta por si só, ou que só se sustenta quando baseado ou fundamentado em evidências.

Lacan inicia seu Seminário justamente subvertendo este conceito equivocado, ao distinguir o que está em questão no discurso como uma estrutura que ultrapassa em muito a palavra, pois sem palavras, segundo ele, este discurso subsiste em relações fundamentais, que por sua vez não poderiam se manter sem a linguagem. O que está em jogo, segundo ele, é a existência do discurso para além das enunciações efetivas.

Outra questão que se coloca, em psicanálise, é a impossibilidade de dissociar-se o discurso da prática, haja vista ao fato de que é justamente este que fornece subsídios para ela. É no discurso do paciente, e não na fenomenologia sob a qual se fundamenta o saber psiquiátrico contemporâneo, que se revela a estrutura diante da qual se constrói a direção do tratamento psicanalítico. O já conhecido aforismo lacaniano, segundo o qual o inconsciente se estrutura como uma linguagem, nos dá base para pautarmos nossa clínica nesta campo, que se entrelaça com a fala, mas não se restringe a ela. Pelo contrário, é muitas vezes na ausência dessa fala que uma estrutura se revela não fenomenologicamente, mas como posição do sujeito na linguagem.

A relação do discurso com o gozo é formulada por Lacan em sua relação deste com o saber, posto que para ele, o saber é o gozo do Outro. Do Outro na medida em que o faz surgir como campo, o da linguagem. Nosso percurso nos mostra que o movimento em direção ao gozo tem como objetivo tamponar a falta, que por sua vez remete ao desejo.

O discurso da ciência contemporânea articula-se justamente com esse tamponamento da falta. Em detrimento à escuta, criam-se cada vez mais diagnósticos baseados em evidências, que desimplicam totalmente o sujeito do lugar de onde ele pode retificar subjetivamente sua posição quanto ao gozo. Questiona-se aqui se não seria esta uma versão caricata do Discurso do Mestre, onde um significante mestre encontra-se no lugar de agente e interfere numa cadeia de outros significantes de modo a produzir uma perda que faz emergir a verdade do sujeito. O questionamento gira em torno do fato deste significante mestre não intervir, ou intervir de modo a não produzir uma perda, uma falta que ponha o sujeito ao encontro de (e não de encontro ao) seu desejo.

Freud sustenta um discurso onde o sujeito não apenas não sabe o que diz, como também não sabe quem o diz, e neste sentido Lacan diz que ele se aproxima de Marx, ao desarrumar o discurso dos que querem questioná-los. Lacan chega mesmo a fazer uma equivalência entre o objeto causa de desejo freudiano (mais de gozar) e a mais valia marxista. Em seu livro Convite à Filosofia, Marilena Chaui aponta três grandes feridas narcísicas provocadas respectivamente por Copérnico, Darwin e Freud no saber humano. A primeira delas diz respeito a Terra destituída de seu lugar no centro do Universo. A segunda ao homem enquanto apenas um elo na evolução da espécie, e a terceira à consciência enquanto menor e mais fraca parte de nossa vida psíquica. Chaui acrescenta a estas três feridas a causada por Marx com seu conceito de ideologia. Sem querer pormenorizar demais a questão, pode-se fazer um equivalente entre o furo que Freud promove no discurso da ciência e o que Marx provoca no discurso capitalista.

A falta. Eis-nos aqui mais uma vez diante dela. E nessa intenção cabe mencionar o Discurso da Histérica, onde o sujeito enquanto agente se dirige ao saber do outro para produzir um questionamento acerca deste e instaurar o mais de gozar. A histérica sabe como ninguém que esse outro é furado, e parte do questionamento dele para manter seu desejo insatisfeito. Lacan afirma que é esse discurso que conduz ao saber. Não o saber da ciência, mas o saber psicanalítico.

Se promovemos um quarto de giro neste discurso, estamos diante do discurso do analista, que tem o objeto causa de desejo no lugar de agente, o sujeito no lugar do outro, o significante-mestre no lugar da produção e o saber deste sujeito no lugar da verdade, a qual somente ele pode ter acesso.

Sustentar o discurso do analista, estar neste lugar, pressupõe presentificar a falta. É o que Freud nos recomenda quando diz que se deve “trabalhar como uma besta” e “tomar todo caso como se fosse o primeiro”.

Em Radiofonia, Lacan responde à impossibilidade de governar, educar e psicanalisar mediante a relação dessas três profissões com o Real, enquanto campo do não sentido. A análise parte de uma equivocação do sintoma para um esvaziamento de sentido, visando justamente o Real.

Portanto, é fundamental que o analista se esvazie de saber e de sentido, questões que passam pela própria análise pessoal, para sustentar seu discurso na clínica. Do contrário, estará literamente fazendo outra coisa que não análise.

BIBLIOGRAFIA

- CHAUI,Marilena: Convite à Filosofia – São Paulo: Editora Ática, 2000

- FREUD, Sigmund:Obras Completas – Rio de Janeiro:I mago Editora,2006

- LACAN,Jacques: O Seminário,Livro 17:o avesso da psicanálise – Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1991

- LACAN, Jacques: Radiofonia in Outros Escritos – Rio de Janeiro, Jorge Zahar,2001

Supervisão Institucional (texto apresentado no Colóquio da EFP, realizado em agosto de 2012)

­Supervisão/Controle

Por Cláudio Arnoldi Carvalho

Antes de dar início à apresentação, gostaria de agradecer a oportunidade de participar deste colóquio junto aos colegas da Escola Freudiana de Psicanálise do Rio de Janeiro.

O texto que segue aborda o tema da supervisão nas instituições. Ao longo do mesmo procurou-se usar como referencial o que Freud e Lacan disseram acerca deste tema, bem como a experiência vivenciada pelo autor nos Centros de Atenção Psicossocial da cidade do Rio de Janeiro.

Uma primeira menção da expressão “Kontrolle” é encontrada no texto de Freud (1919/1976) sobre o ensino da psicanálise nas universidades. Encontramos nesse texto a formulação do consagrado tripé da formação analítica.

Esse tripé serve de base para que o analista, segundo Lacan, se autorize por si mesmo, e tal passo não prescinde desta base. A escola pode, por sua própria iniciativa, garantir que o analista dependa de sua formação e este pode querer essa garantia, que o faz tornar-se responsável pelo progresso da Escola e psicanalista da própria experiência.

A palavra supervisão nos remete a uma visão ampliada, sob a qual Lacan contrapõe o conceito de super-audição, onde se destaca a dimensão da palavra (escutar/dizer),em detrimento ao ver. Trata-se portanto do espaço onde um analista leva a outro com gradus mais elevado impasses advindos de sua prática clínica.

Ao longo do meu percurso pelos CAPS, tive a oportunidade de tomar parte em diversas supervisões clínico-institucionais, realizadas em sua grande maioria por psicanalistas de formação lacaniana. Esses profissionais não fazem parte da equipe técnica, uma vez que é necessário ouvirem os impasses da clínica de outro lugar que não da prática cotidiana

Outra de suas funções consiste em identificar o que pode ser elaborado mediante supervisão e o que remete à análise pessoal do supervisionado e deve ser trabalhado em outro cenário. Esta talvez seja a tarefa mais árdua do supervisor, posto que os impasses da clínica quase sempre esbarram em questões pessoais e ambos mostram-se por vezes indissociáveis.

Nesse contexto, Kessler alerta que o papel do controlador/supervisor seria o do narrador, aquele que não está na cena, mas que coloca as questões que sejam pertinentes. Entende-se daí que a supervisão pressupõe uma alteridade, uma dentro-fora, de modo a presentificar a falta enquanto causa de desejo do analista.

A função do Cartel

A FUNÇÃO DO CARTEL

por Cláudio Arnoldi

O texto que segue tem por objetivo elucidar um tema tão debatido no atual contexto da Escola Freudiana de Psicanálise do Rio de Janeiro, quer seja: a função do cartel enquanto sustentadora de uma praxis que visa o ato analítico, suposto por Lacan como o "momento seletivo em que o analisando passa a analista" .

O cartel do passe

Na ata de fundação da Escola Francesa de Psicanálise, o mesmo Lacan¹ afirma que o ingresso na instituição se dá por duas vias de acesso, sendo a primeira:

" O grupo constituído por escolha mútua segundo o ato de fundação, e que se chamará Cartel, apresentando-se para minha aprovação com o título do trabalho que cada um tencione levar adiante nele."

A razão de ser de uma Escola consiste no final de análise e encontra seu fundamento no passe, que percorre a fronteira entre o particular de uma análise e o universal da formação. A lógica que rege o funcionamento da Escola pressupõe a psicanálise em intensão, coexistiva ao passe e em extensão,que a presentifica no discurso social. O órgão base dessa Escola, enquanto transmissão de um saber sobre o desejo, é o cartel.

Juntamente ao estudo teórico e à análise pessoal, o cartel se impõe como um dos dispositivos necessários à formação do analista, sendo três o número mínimo de membros para que ele opere, cinco o máximo e quatro o ideal. A esse respeito, Cabas² ressalta que o ponto de partida é o numero 0, e que Lacan o define como o "número que corresponde à presença do sujeito", e afirma que a conta para obter o número 4 consiste em uma série de repetições do 0.

O Mais-Um

Uma vez entendido que no cartel o sujeito põe seu particular e responsabiliza-se, como é de se esperar, pelo seu percurso, convém ressaltar que o Outro, entendido enquanto campo da linguagem, pressupõe um ponto de a-subjetivação. Esse ponto é encarnado pelo Mais-Um enquanto função na medida em que ele promove uma assimetria no cotidiano do cartel ao confrontar o sujeito na sua relação com o saber.

Cabe ressaltar que muito embora possa ser encarnado por uma pessoa ( da qual se exige uma desidentificação narcísica ao produto de trabalho do cartel), a função do Mais-Um se define enquanto uma presença simbólica, podendo ser ocupada, por exemplo, por um texto-base, um livro, ou mesmo extratos de um caso clínico. O que está em jogo aqui, como se disse, é a relação do sujeito com o saber que se produz, ,no sentido de viabilizar que a questão que o move possa ser interpretada sob o estatuto de um escrito.

No atual momento vivido pela nossa Escola, concebe-se a formação dos cartéis como fundamental para a sustentação das transformações que se fazem necessárias à mudança de direcionamento clínico e convocam cada um de nós a construir seu percurso regido pela ética do desejo. Impasses hão de surgir nesse processo e não apenas são esperados, mas entendidos como parte dele e, se bem manejados, fundamentais para o progresso da instituição.